Chesterton dizia que o problema do homem moderno não é apenas que ele deixou de crer em Deus, mas que, deixando de crer Nele, passou a acreditar em qualquer coisa.
Tempos difíceis. Vê-se hoje a situação dos cristãos: amargamos, por debaixo do silêncio criminoso dos veículos midiáticos, a soma de 100.000 assassinados por motivo de confissão religiosa em todo o mundo.
Tempos difíceis. Estamos de visita em casa. O lobo, sim, o lobo. Para além da oposição externa, há os corruptores internos.
Sabe-se que o cristão não pode, (e já) por definição, andar de mãos dadas com esta massa indigesta que é o mundo moderno, cujas características mais determinantes assentam sobre a negação mesma da religiosidade autêntica e o materialismo como pretenso traço de todo o repertório de ideias e ações humanas. Qualquer discordância, qualquer opinião contrastante que salte através do materialismo enquanto única perspectiva razoável de compreensão da realidade, é indiscriminadamente rechaçada como loucura ou - palavra de ordem nos dias atuais - como “fundamentalismo”.
Nesse contexto, o recente caso do Porta dos Fundos é emblemático: os cristãos, sentindo-se vilipendiados pelo “humor” do grupo, são tidos em conta de destemperados, maldosos e radicais. Pois bem. De minha parte, digo que os cristãos tem todo o direito de se opor à infeliz esquete publicada pelo grupo, e explico.
Alguns defensores do Porta dos Fundos, ao julgarem excessiva a reação dos cristãos, dizem: “mas, trata-se apenas de humor”. Tudo bem. Contudo, coloquemo-nos no lugar dos católicos, por exemplo: que acharíamos, sinceramente, de termos nossas mães referidas num vídeo como adúlteras ou coisas do tipo? Isso porque, para nós católicos, a Mãe de Jesus também É nossa Mãe - e, isso, há cerca de dois mil anos divulgamos, para que os "desavisados" não aleguem contra nós alguma negligência propagandística. Os mais liberais, autoproclamados menos “moralistas”, podem achar exagero, intolerância, mas, ainda assim, convenhamos... pode-se compreender quando alguns católicos, que, em geral, cuidadosamente se abstêm de xingar as titias, primas e genitoras alheias, não achem “tão legal assim” estar numa situação dessas.
Trocando em miúdos: não é por falta de razoabilidade que os católicos não gostaram do vídeo do grupo. Ponto. Apesar disso, este é o ponto que menos interessa para a legitimidade pública de uma confrontação dos cristãos ao que o grupo fez. O mais importante diz respeito à atenção ao uso do humor como política cultural.
Ian SBF, um dos diretores do Porta, numa entrevista ao jornal O Globo, disse que "a intenção do vídeo não era atacar a fé dos cristãos, apenas fazer rir...". Com isso, o grupo se isenta e prova, por assim dizer, o exagero dos segmentos religiosos que tão veementemente se contrapuseram ao vídeo. Só que ele não pára por aí. Prossegue: “Mas até ficamos contentes com isso, porque acaba gerando discussão. O assunto parece velho, mas até hoje é necessário debater sobre os benefícios e malefícios das religiões”.
Ora!, sinceramente, os membros do Porta dos Fundos tem de se decidir. Ou estão apenas fazendo humor “inofensivo” - e os religiosos passaram do ponto - ou há uma crítica, um afetado componente político-cultural intrínseco ao trabalho do grupo (ao menos neste caso), o que automaticamente legitima a resposta dos religiosos (mesmo que não seja uma resposta somente no nível cultural, o que seria até mais recomendável). Muitos artistas fizeram piadas com a religião (o que, pessoalmente, não recomendo, mas entendo que muitos não partilham deste mesmo pensamento), e a sociedade não viu os religiosos darem chilique. O humor como ideologia pode ser combatido sem problemas (uma vez que, nesse caso, o que está substancialmente em jogo é seu conteúdo político), denunciado na sutileza de suas expressões e flagrado em sua pretensa onipotência. Dito de outro modo, não se trata de uma limitação do humor em si mesmo, mas apenas de ressaltar que o seu discurso deve ser posto à luz, para que o observador distinga de alguma maneira o elemento lúdico do político; não é separar as piadas da política; é chamar atenção para o fato de que aquelas não podem servir para produzir o efeito que a fala do Ian sugere, mesmo que inconscientemente: a unilateralidade do discurso no qual alguém se pode valer do humor para atacar, sem ter de responder pelo que fala.
O pior do humor não é a crítica inconfessada (que é uma poderosa arma), mas é querer a invencível dialética coxa. O precipício moral de qualquer atividade humana repousa na imputabilidade do "sem-querer-querendo" das ações.
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